06 setembro 2010

DE FLOR SOLITÁRIA A CANTEIRO DE MUDAS


TEMPO DE SECA:
COMO UMA CANÇÃO, A CHUVA
 ACORDA AS SAÚVAS.
(Bestiário de infância, 2001)

 Há alguns haikaistas despontando lá pela Canabrava. Sei que não posso dizer exatamente desse modo. Haikai é uma experiência e forma poética muito singular do mundo oriental. O que se tem feito em Uibaí, e isso é também louvável, são experiências baseadas nesse tipo de criação na qual Bashô, Buson e Issa eram mestres. Produz-se por ali algo com espírito de haikai.


MANHÃ CHUVOSA:
TECE COM O BICO ALGUNS RAIOS DE SOL,
A FIGUEIRA NA COPA DO MAMOEIRO.
(idem)
Creio que esse gosto pela arte surgiu na Serra Azul depois do lançamento de um livrinho meu chamado Bestiário de infância e outras traquinices, impresso em 2001. Nas páginas do despretensioso Bestiário não há haikai, mas experiências baseadas no gênero e na filosofia zen que o embala. Seria mais uma tentativa de desdomesticar o olhar poético e reorientá-lo para o espanto cotidiano de coisas insignificantes e de outras miudezas. Mas havia um método ali no Bestiário de infância. A ideia predominante estava em estabelecer um Kigô não oriental como eixo da divagação: tempo de seca e tempo de chuva.  Os dois momentos determinantes da vida no sertão, que marcam sua originalidade. Os momentos mais marcantes que determinam inclusive uma semiótica, tanto para os seres humanos quanto para as demais coisas: os bichos, o clima, as paisagens... Estabelecia-se ali a experiência sertaneja com o haikai. Como disse um amigo professor de Literatura, "uma poesia fenomenológica". Esse foi o meu achado. E ele se dilui agora em outras veias e sentimentos poéticos e é muito bonito de se ver a coisa progredir e ir ganhando corpo em outras vozes, em outras peregrinações poéticas. De flor solitária na caatinga, o Bestiário de infância e outras traquinices virou canteiro de mudas singulares, cheio de modos de olhar para as particularidades das terras e da vida sertaneja. A poesia tem esse poder de contaminação. Aos poucos, ela vai-se enraizando nas rachaduras da alma, nas fissuras do desejo e quanto menos se espera desabrocha irresistivelmente como uma onda que se levanta do nada com uma força enigmática. Que bom que é assim. Há braços!

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