20 janeiro 2011

TUMASA É OSSO!


       Na entrada da Rua do Cascalho, algumas casas adiante, abre-se um vão onde podemos contemplar o mais antigo prédio escolar da Canabrava. Essa construção esteve abandonada por muitos anos na década de oitenta e foi ocupada algumas vezes por necessitados. Uma ou outra família carente de moradia alojou-se nos cômodos decrépitos do velho estabelecimento escolar e garantiu teto aos filhos até situar-se melhor na vida. Outras vezes, a escola abandonada serviu a indigentes e loucos de rua.
       O mais folclórico doido de rua que habitou as dependências da escola desativada foi Tumasa. Uma senhorinha já idosa, de cabelos grisalhos e tronco meio arqueado que a meninada atormentava diariamente chamando de Tumasa é osso. Não sei o motivo exato do apelido, mas a velhinha destemperada subia nas tamancas quando algum moleque gritava próximo ao prédio tal apelido. E não queiram saber o porte dos palavrões cabeludos, das maldições atiçadas por Tumasa nos que se atreviam a importuná-la. Quem de longe via a expressão frágil, amargurada e corroída pela loucura daquela idosa indigente poderia imaginar um monte de coisas, mas quase sempre seus xingamentos ultrapassavam nossa pobre imaginação.
            Bagaceira mesmo ocorria quando alguém se dirigia a Tumasa, nas raras vezes em que ela deixava o cômodo decadente do prédio para angariar alguma coisa na rua, e dizia-lhe que estavam roubando o ouro dela lá no prédio. A velha virava o satanás, soltava a língua para cima do insolente e se o gozador vacilasse era capaz de tomar uma feroz cabada de vassoura na cabeça.
           -Filho da puta! Desgraçado! Vai entrar dentro do cu de tua mãe satanás excomungado! Eu te mato e te mando para o fogo do inferno se tu roubar meu ouro 24, peste das profundas!
            Era mais ou menos assim que a velhinha saltava nos moleques atrevidos. E xingava e provocava e pragueja até não mais parar. Ás vezes passava o dia todo xingando por causa de alguma insolência de que fora vitima pela manhã.
                       Tumasa era alvo de brincadeira de adolescentes, de adultos e da molecada em geral. Não apenas ela, mas quase todos os desajustados sociais com algum distúrbio mental que perambulavam pelas ruas da Canabrava. E era degradante a situação humana dessas pessoas. No fundo foram abandonadas por familiares, amigos e conhecidos. Viram-se forçadas a encarar a aspereza das noites dormidas na rua e das mais básicas privações.
                       Tive a oportunidade de testemunhar a existência de alguns desses excluídos. Alguns da família mesmo como Chico de Elói, Firmício, João Tolo e outros que nunca soube exatamente de onde vieram como Tumasa, Cirço e Bira Doido que dormia dentro de um carro velho dos anos 50. Se não me engano um Opel Olympia Rekord verde abandonado na porta de Dona Petronila, no Largo do Cruzeiro.
                       Todas essas almas gauches, cada uma com sua característica marcante, acabavam adotadas pelo povo e não deixavam de ser vistas com certa compaixão ou simpatia pela maioria da população. Porém poucos paravam para pensar particularmente na condição de abandono, no deus-dará em que se resumiam suas vidas. No fundo, sempre reinou uma estranha relação de amor e repulsa por esses entes humanos, uma relação pautada pela mistura de sadismo, afeto, simpatia e medo. É como se eles fossem nossos brinquedos dos quais abusávamos sem perder a noção dos limites que nos separavam deles e sem saber também que fim levariam. Para mim, Tumasa e Bira Doido sumiram misteriosamente do mesmo jeito que apareceram.
                       Nita Doida, de quem me lembro agora, também sumiu. Mas antes, desenhou, riscando a areia com uma vareta de malva, sua casa imaginária na frente do prédio velho do Cascalho. Nessa casa, que não passava de riscos no chão, obrigava Manoel Guimário, seu filho de dois ou três anos, a não ultrapassar os limites. Impedia a desafortunada criança de pisar nas linhas riscadas no chão como se ela estivesse subindo nas paredes da casa. E Nita ficou por ali a mercê da intolerância e do abandono com a guarda de uma criança inocente. Coisa difícil de entender. Como a sociedade não se deu conta de tal situação absurda? E ao que parece todos sentiam o de sempre: simpatia, pena e desprezo por aquela mulher sentada na areia ao lado de uma trouxa suja e trapenta, com os cabelos desgrenhados e o semblante transtornado, conversando coisas inaudíveis, ensimesmada, dando-se conta do mundo real nos raros momentos em que tinha de ralhar com o negrinho Manoel Guimário. E não poucos se furtavam ao prazer sádico de amolar a paciência de Nita , arrancando-a de seu mundo imaginário, vendo-a se desfazer em ataques agressivos, gritos e palavrões.
                       Tumasa, Nita, Bira, Cirço, Tó, Firmício, João Tolo e Chico de Elói, entre tantos que se foram, mostraram-nos do que somos capazes. Temos tudo do bom e do pior e não conseguimos sempre dominar bem as nossas escolhas, se é que de fato conseguimos escolher. Há braços!



04 janeiro 2011

EM HOMENAGEM AOS SÁBIOS DE REBANHO!

Estão tentando substituir a justiça, a verdade dos fatos e o bom senso pelo vômito emocional do populacho. A internete está cheia de sábios alimentando enquetes falaciosas com ecos da voz do populacho como se esta fosse a voz da razão e dos melhores caminhos para a humanidade. Não custa nada lembrar que o fascismo foi produto da vontade popular, que o nazismo não foi diferente do fascismo e que se existem escolas, academias e centros de produção e de divulgação da ciência, do conhecimento em geral é exatamente porque a insanidade de certos arroubos populares precisa ser contida de modo a prevalecer a razoabilidade da racionalidade  e da convivência plural saudável. A esses sábios, cujo saber se move de acordo com a irracionalidade do populacho, deixo um golpe do implacável martelo de Nietzsche:"E mais de um poderoso, que queria estar bem com o povo, atrelou à dianteira dos seus cavalos um pequeno asno, um sábio célebre". (Nietzsche: Also sprach Zarathustra, p.97) Há braços!

31 dezembro 2010

BOCA DO INFERNO -66: ALGUMA LUZ PARA O ANO NOVO

-Ai dela, morta e viva na caçapa! Esse foi o grito de emoção quando viu a bola sete encalacrada na caçapa da mesa de sinuca. Estava pela bola sete! Na vida e no jogo! Nem sabia se ia voltar para casa. Então gritou para o negro suarento atrás do balcão: -Traz mais uma aí que eu quero ver essa infeliz furar a estopa! Ou ela morre ou eu morro! Ouvindo essa, o negro dono do boteco não perdeu a chance: -Não morre não infeliz, teu pendura tá comprido aqui! (E deu uma gaitada).Meu estoque de quebrafacão e jatobá já  foi pro saco! Trata de matar essa xibunga dessa bola! E toma a vitória como se fosse um recomeço na vida! Nisso entrou um meninote no bar: -Seu Manilim, mãe mandou buscar um litro de querosene! Depois pai paga! 
O cabra que mirava a bola sete com o taco ameaçando a bola branca levantou a cabeça: -Tua mãe acha que eu sou rico é Damião? Para de malinar nesses sacos de pipoca aí e puxa pra casa! -Mas pai, hoje é virada do ano, a gente vai ficar no escuro de novo? Eu queria pelo menos ler uma história do livro da escola para mainha e as meninas! Uma estória bonita de final de ano feliz, como fazer isso no escuro? Os candeeiros já comeram a matula quase toda, sem uma gota de querosene! - Dá um um jeito de ler essa bobajada enquanto tiver claro! O pai interveio sem pena. - Mas pai, minha mãe e as meninas só vão pra casa à noite, depois que acabar o eito combinado da arranca de feijão de seu Modesto. Agora, ela só passou lá em casa para cozinhar um feijão para nós. - Vixemaria, era hoje é? Nem lembrei dessa coisa! Disse o pai coçando a cabeça e apoiando o taco de sinuca sobre a ponta da sandália velha de couro. - Tô empembado mesmo! É coisa do cão isso! 
Seu Manilim já ia dar uma sugesta quando entrou o negro Soizinha no estabelecimento: -Oi, merimãozim! Cela largou Soizinha, mas num tem nada não merimãozim, Soiza dá um jeito! O que importa é que Soiza tá vivo, num é merimão? Enquanto dizia isso Soizinha quebrava o corpo para um lado e para outro, ia para frente e para trás quase imitando um gingado de capoeira. - E esse bitelim aqui é teu merimão? Perguntou o negro Soizinha para o homem apoiando o braço no taco de sinuca. Soizinha alisava a cabeça do menino enquanto abria um sorriso simpático. - Ô merimãozim, Soizinha queria um bichim desse aqui, mas Soiza num pode merimão! É muita labuta mode criar o bichim! Tem que dar o dicumê, os estudo, umas mudinha de pano pra mode agasalhar o bichim e Soizinha num tem de onde tirar, merimãozim! Por isso Soiza ficou aqui só!
 O homem finalmente conseguiu enxergar o menino ali diante dele, ao lado do negro Soizinha. Jamais tinha olhado para o filho de tal maneira. Olhou nos olhos do moleque e viu que havia certa altivez e um frescor de esperança que ele mesmo nunca teve. Sentiu-se orgulhoso por um instante. Aquele moleque ali tinha bons sentimentos, tinha alma de desbravador e ele mesquinhando um litro de querosene, enquanto enchia a cara de pinga e jogava sinuca! Um derrotado querendo derrotar o próprio filho.
 Olhou para a bola sete encalacrada na caçapa do canto da mesa de sinuca. Largou o taco e foi abraçar o moleque como nunca havia feito. Tomado de emoção foi ao balcão: - Seu Manilim, me bota um litro de gás aí e ajeita uns quatro pacotes de pipoca para meu menino aqui. Seu Manilim que viu no olhar do homem uma mudança, algo  diferente do de sempre, nem se importou com mais um pendura. Providenciou o querosene e as pipocas. Então o homem pegou as provisões e já ia saindo abraçado ao menino quando ouviu a voz do dono do boteco lá de detrás do balcão: - Não vai derrubar a bola sete não? Foi nesse momento que Soizinha atalhou a conversa de Manilim. Não perdeu tempo e interferiu antes de qualquer resposta do homem: - Ô merimão, o home já venceu a partida, sossega!   HÁ BRAÇOS!

30 dezembro 2010

UM GOSTO MUITO ESPECIAL

     Para Edmundo Agnelo e Dermival Agnelo

O emendar de cantos de galos se estendia como uma corrente sonora que tomava conta do povoado. Era madrugada na vila de Buqueirão da Serra. Meu avô se livrava da cama  já reclamando de alguma coisa. Minha avó, mais ágil, não passava de um vulto ariando um imenso tacho de cobre. Entoava baixo, para si mesma, alguma ladainha. Meu avô amargo, ela doce. Minha avó doceira e dócil, o marido lavrador, mal humorado. Apesar do nome, meu avô em nada lembrava um cordeirinho. Fato é que essa antítese primal gerou uma família. Entre os dois temperamentos germinaram outros e as alegrias e desgostos foram se alternando.
O velho levou o chapéu de massa à cabeça e atravessou a Rua Nova rumo à praça da feira. Passo apressado para se livrar da concorrência. Sempre o primeiro a chegar às bancas de carne levava o melhor jornal. É que àquela altura dos anos cinquenta a existência de rádio ou jornal no lugarejo de pé de serra era precária e meu avô, ao que parece, herdou a curiosidade e a ansiedade por leitura como a maioria dos descendentes de Isabel, filha do patriarca daquele pedaço de chão. Desde os anos quarenta cultivava o hábito de comprar a carne que vinha fartamente enrolada em folhas velhas de jornal. Ficava assistindo e orientando o açougueiro a enrolar o jornal na carne de modo que não estragasse as folhas. Chegando em casa desfazia a embrulho com zêlo até ter livre nas mãos duas ou três folhas inteiras, que botava para secar. Mais tarde leria uma a uma se deliciando das notícias publicadas há mais de cinco meses ou ano. Era um ritual, todas as tardes: escorava o tamborete na parede da frente da casa e abria sua preciosa folha de jornal, no que ia lendo lentamente e com alguma dificuldade até as vistas arriarem, atrapalhando a vontade. 
A leitura amenizava o mau humor do velho, todos já sabiam disso e preferiam não incomodá-lo, e torciam também para que as folhas manchadas de salmora alimentassem o ânimo dele até a próxima feira. Quando a leitura não dava até o fim da semana meu avô ralhava, implicava com os meninos, reclamava até do cheiro “enjoado” do doce de gergelim fervendo no tacho. Minha avó murmurava enquanto mexia o doce, pedia a Deus uma explicação para o destempero do marido.
O velho descobriu a mina de jornais vencidos quando passou a matar porcos para vender da feira da pracinha da vila. Na convivência com os açougueiros da Lagoa e da Roça de Dentro, negociava as sobras de jornal das bancas por tiras de toucinho. Às vezes voltava para casa com uma pequena pilha de folhas soltas dos diários que circulavam pela capital. Quando não havia jeito de faturar algumas para ler em casa, acabava comprando a carne dos comparsas de banca exigindo que a enrolassem em fartas folhas de jornal.
Certo final de feira, sem conseguir trocar uma tira sequer de toucinho pelo jornal de sempre, o velho desesperou-se. Não podia cometer a loucura de comprar carne apenas para ter o jornal. A feira tinha sido fraca e boa parte da carne de porco que levara voltaria para casa, tornando difícil justificar à mulher o gasto com carne. Voltou então com um terrível mau humor. Passou porta à dentro sem sequer olhar para um grupo de rapazes sentados na calçada vizinha, conversando e dando risadas. Já na cozinha, antes de a mulher dizer qualquer coisa, foi logo disparando:
Não agüento esses moços de hoje com essa rincheta e essa chincharra! Em vez de irem ajudar os pais na roça ficam alimpando calçadas dos outros, vigiando a vida alheia!
A mulher que mexia um tacho de doce de buriti na trempe improvisada no alpendre, levantou a cabeça e ficou tirando uma linha do marido, mas não disse nada. Então um cheiro forte de perfume Casa Blanca impregnou o ambiente e chegou às narinas do velho.
- Rum, hum, hum, que carniça é essa? – disse sem esperar resposta, saindo em direção ao quarto, no que entra encontra um dos netos, todo lorde, penteando o cabelo. Mais uma vez desabafou:
  - Não posso nem ver esses rapazes que passam o dia na frente do espelho com o pente enfiado no cabelo!
- Ôxe vô, hoje tem baile na Voz do Povo, é mode eu ir parecendo o quê?
-      Tá, mas precisa engomar a cara com brilhantina?
-      Não vô, mas todo mundo usa!
-      E onde arranjou essa goma e esse cheiro?
-      No armazém de seu Marcionilio!
O velho torceu a cara meio que desaprovando e disse antes de se retirar do quarto: - Seu Marcionilio tá botando a mocidade a perder!
O anoitecer morno não amenizou a inquietação do velho. Ele então foi ao gabinete do primo boticário, na Rua Grande, recentemente autorizado para a profissão de dentista, que já exercia, a fim de prosear e saber a quantas andava a política de Cazuzão e João Soares em Xique-xique. Na feira havia encontrado aquele parente montado num cavalo, com a voz trovejando, vindo da beira do rio e prometera passar no gabinete dele para se inteirar das novidades políticas.
Chegou ao gabinete do parente e o encontrou concentrado na leitura de um manual de Medicina Homeopática.
-      Entra primo! – estrondou a voz lá de dentro.
- Moço, assunta o atropelo... - disse meu avô com voz mansa ao passo que seguia em direção ao dentista, - Tem uns dois dias que não me aparece uma folha mode eu ler. Vai dando um nervoso do diacho!
- Pois isso não é problema! - disse o boticário levantando as vistas. Olha aqui esses Almanaques Capivarol que me arranjaram lá na beira do rio! Pode levar se quiser todos os volumes!
O velho arregalou os olhos, esboçou um leve sorriso, recolheu o pacote com uns seis Almaques Sadol e Capivarol agradecendo ao primo e sentou-se no tamborete, ao lado de uma espécie de motor a pedal, puxando prosa:
- É verdade que João Soares num tá querendo arredar o pé de indicar o delegado?
- É, mas isso já é empreita perdida! Cazuzão já acertou com o governador e o delegado é nosso! Vamo ajeitar Jõao Barreto! Mas os home aqui, cê sabe, acertaram Dió pra representar na vila. Vamo ver quem tem mais braço!
- Tomara que  Buqueirão da Serra saia ganhando nessa história! .
Depois de uma longa prosa, meu avô bateu perna pra casa, leve como um tufo de algodão. Só de olhar para aquele estimulante pacote de almanaques. Agora sim tinha munição pra bem um mês, isso contando as relidas.
Chegou em casa assoviando, deixou os almanaques em cima de uma velha cristaleira no quarto da entrada do corredor, pegou no colo uma neta pequena que àquela hora ainda brincava com uns bois de buso e uma boneca de pano nos ladrilhos do corredor da casa. Fez umas brincadeiras, foi lá dentro do quarto de despensa trouxe um taco de rapadura e deu para a pequena se distrair. Voltou para o quarto, catou um Capivarol, posicionou o candeeiro e recostou no colchão recheado de palha de uma cama velha de solteiro e começou a folhear com prazer e curiosidade a singela publicação. (segue)

LULLA, A FARRA PUBLICITÁRIA!

Lulla se despede do posto de presidente da república com uma aprovação impressionante, mas não tão impressionante quanto o volume de marketing e publicidade que tem sido investido nos últimos dias em sua imagem. A insistência em compor uma imagem de salvador, uma imagem santificada de Lulla chega às raias da irracionalidade, lambe as fronteiras do grotesco.
Essa coisa de endeusamento já vinha rolando desde aquele filme fracassado Lula, o filho do Brasil que tentaram em vão fazer cair no gosto popular. Agora procuram criar um fantasioso clima emocional de despedida para quem sabe preparar o retorno dessa figura ao poder. O problema é que nesses últimos suspiros de 2010, quanto mais intensificam a publicidade, mais Lulla fala abobrinhas, mais se comporta como um fanfarrão ridículo e tresloucado.
 Para mim, Lulla já vai tarde, ele e seu rol de mentiras, ele e sua cota pessoal de corruptos, ele e sua vigarice notória, ele e sua língua grande pingando vaidades e lorotas.  E digo mais, a quantidade de milhões desperdiçados na despedida publicitária de Lulla daria muito bem para construir   algumas centenas de casas do programa Minha casa, minha vida que prometeu a entrega de um milhão de casas e  alcançou pouco mais de duzentas mil.  Há braços!

29 dezembro 2010

NO LEITO DAS RELEITURAS

Aos poucos venho tornando cotidiano o exercício da releitura. A certa altura da vida  assalta-nos o sentimento de que releituras são mais importantes do que leituras. Talvez isso ocorra quando a gente se dá conta de que a memória sabe mais das leituras do que das próprias obras lidas. Aí é hora de voltar aos textos, às fontes das memórias. E quão maravilhoso é constatar que na verdade não existe releitura, pois quando a gente volta ao texto ele abre-se como um leque de novidades e surpresas. Aqui vale reinventar a máxima de Heráclito de que o homem não toma banho duas vezes no mesmo rio,  porque  ao fazê-lo nem ele e nem o rio serão mais os mesmos. Pois então, ao reler nem o leitor e nem o livro serão mais os mesmos. 
A volta ao texto revela-se assim como a ida a outro texto. Eis um dos mistérios da linguagem: os mesmos signos com outros sentidos! Estão os sentidos, afinal, no homem, no texto e no mundo que o cerca . A dinâmica simbólica que altera a todo momento a cognição humana lança seus fios e raízes sazonais nos acontecimentos, nos eventos e nos signos espalhados ao longo da existência e tudo se decompõe e se recompõe de modo às vezes imperceptível. Quando voltamos ao livro sobre o qual nos debruçamos há alguns anos sentimo-nos surpresos com as novidades que a leitura fresca vai apresentando ao nosso entendimento. Acodem-nos inesperados sentidos, muitas vezes em franco desencontro com a nossa memória. Há braços!

27 dezembro 2010

A BURGUESIA DO DINHEIRO PÚBLICO

Eles odeiam a burguesia! Fundaram sindicatos e construiram carreiras políticas as custas do discurso contra a exploração, crime praticado por  patrões e por burgueses. Alimentando o ódio contra burgueses e patrões, eles arrebanharam gente suficiente nos seus sindicatos, com isso foram armando fio a fio tramas no espaço do poder. Nas tramas do poder que teceram dos sindicatos até a administração pública, alcançaram os melhores postos e se apossaram deles como um direito vitalício rubricado pelo gado que reúnem sob seu comando. Falo do sindicalismo brasileiro. A estufa das piores práticas políticas da atualidade.
O governo Lulla está tomado pela burguesia sindical. Segundo uma pesquisa da professora da PUC-RJ, Maria Celina D'araújo, autora de "A elite dirigente do governo Lula", quase metade (42,8%) dos cargos públicos DAS 5 e 6, com salários de até 22.000 reais é ocupada por sindicalistas, sendo que 84% desses 42,8%  são sindicalistas do PT. Então a gente pode ter uma noção dos objetivos dessa turma que arrota ódio a patrões e burgueses em geral e usa sindicatos como currais para mover manadas em direção aos seus objetivos nada coletivos. 
Fora o bilionário imposto sindical arrancado dos salários, independente da vontade do cidadão trabalhador, essa gente que "odeia exploração e burgueses" ainda abocanha seus carguinhos no governo para tirar seu troquinho de vinte e dois mil reais e tomar seu wisquinho 12 anos e levar sua vidinha burguesa financiada pelo sangue dos trabalhadores e pela grana pública. O sindicalismo está calado há oito anos. Dá para entender o motivo agora ou precisa desenhar? O ódio deles é retórico, sempre foi! O ódio deles escondia na verdade o desejo de explorar e sugar os trabalhadores tanto quanto os patrões e a burguesia privada. Assim, em que eles se transformaram mesmo? No que sempre foram! E acertou na mosca quem  respondeu NA BURGUESIA DO DINHEIRO PÚBLICO! Dito isso não é difícil constatar que os trabalhadores estão mais ferrados do que antes: agora eles são explorados pela burguesia do dinheiro público também. Há braços!

A ERA DO ARROTO

Nós estamos entrando na era do arroto. É assim: com o advento da popularização da internete e demais meios de comunicação, quadrúpedes ruminantes que antes arrotavam apenas para continuar a mastigação estão convencidos agora de que o arroto é comunicação, pior imaginam que o arroto é a síntese metafísica da profundidade intelectual. O sujeito mal consegue se equilibrar sobre duas patas e já solta aquele arrotão cheio de arrogância poluindo o ambiente com os gases da mais pura burrice. O caso é sério: os tradicionais coices e berros viraram um ajuntamento lamentável de palavras espalhados em blogs e sites  cretinos que mais parecem um fardo de alfafa. A estampa da inteligência quadrúpede: quanto mais vazio e superficial melhor. Quanto mais moitas de capim distorcendo a realidade mais a coisa se lhes parece bonita e agradável. Quanto mais pasto, mais atraente a paisagem. Numa época em que prospera a moral de rebanho há coisa mais atrativa do que um pasto verdinho? Há braços!

23 dezembro 2010

BAJULAR É UMA ARTE QUE EXIGE TREINO

O mundo está repleto de bajuladores, dos mais fuleiros aos mais aristocráticos. A bajulação é a arte de paparicar os poderosos (ou quem se imagine que é) com a finalidade de obter benesses, vantagens ou, a depender do perfil de caráter do bajulador, pelo menos aceitação. O jogo do poder é um jogo de trocas. Como o bajulador não tem nada a oferecer para participar da trama do poder ele oferece o elogio, a babação, a exaltação de miudezas como se fossem grandes feitos. Ele se põe a criar uma super imagem do bajulado, a enaltecer seus gestos a plantar grandiosidades onde há apenas mesquinharia e mediocridade. Isso funciona? Quase sempre quando o bajulador é treinado e competente. 
Mas há os bajuladores pé rapado. Aqueles que fazem encenação grosseira e espalhafatosa. Aqueles que plantam listinhas dos melhores do ano. Dos feitos mais incríveis da década etc dando visibilidade exatamente aos tipos  que agradarão aos poderosos de sua imaginação. Nesse caso a história vira o terreiro do bajulado e tudo que ocorreu fora do terreiro é apagado com uma desonestidade gritante. O castigo desse tipo de bajulador é que a História passa, a curtíssimo prazo, como um trator por cima de sua encenação expondo-lhe como a figura patética que realmente é. Nesse caso, não se sabe o que é mais ridículo, se o desfile de nomes que compõem a tela de bajulação ou se o pintor desajeitado que lambrecou a tela compondo a cena. Sendo assim, não será de todo necessário denunciar esse tipo de bufão. Há bajuladores mais perigosos e esses o pensador Plutarco descreveu muito bem no seu ensaio Como distinguir o amigo do bajulador . A certa altura diz o pensador grego: De qual bajulador é preciso se proteger? Daquele que não aparenta sê-lo, que nunca surpreendemos rodeando as cozinhas ou calculando no relógio a hora do jantar, e que nunca se permite à mesa nenhum excesso, mas que é sóbrio e moderado, curioso para ver tudo e tudo ouvir, procura antes envolver-se nos nossos negócios, penetrar em nossos segredos mais íntimos; enfim, aquele que, longe de interpretar seu personagem bufão ou comediante, conserva na conduta ou caráter sério e honesto.  HÁ BRAÇOS!

OBRA CITADA:
Plutarco. Como distinguir o amigo do bajulador Tradução de Célia Gambini. São Paulo, Scrinium, 1997