14 julho 2006

BOCA DO INFERNO - 32

EDITORIAL

A maneira como o governo federal vem administrando certos problemas de ordem internacional tem gerado bastante preocupação. O problema básico está no fato de o governo Lula colocar interesses ideológicos acima da soberania nacional. Não é difícil perceber que atualmente há um alinhamento ideológico entre os governos do Brasil, Venezuela, Cuba e Bolívia. Não há problema algum em governos executarem manobras estratégicas para fortalecer seus parceiros políticos. Porém, isso se torna preocupante quando, em nome dessas estratégias, esses parceiros tomam decisões que lesam seus paises ou ferem automaticamente a soberania dos demais.
O caso da nacionalização das reservas de gás efetuada por Evo Morales é o mais atual exemplo de violação de acordos diplomáticos que deveriam ser respeitados. Afinal, quando o governo boliviano baixou o decreto de estatização das propriedades da Petrobrás em seu país, ele não estava lidando simplesmente com uma empresa multinacional, mas sim com uma empresa estatal brasileira que para efetuar qualquer contrato internacional com a natureza do que foi efetivado na Bolívia, do porte de $1.500.000.000 (um bilhão e quinhentos milhões de dólares) teve de executar intensa negociação diplomática e cumprir regras internacionais de comércio.
Longe de nós achar que qualquer nação não tenha direito de proteger aquilo que considera patrimônio estratégico de seu povo. Há, entretanto, um porém, se o contrato foi feito seguindo corretamente as regras de comércio internacional, na época com consentimento de ambos os governos, o mínimo que um chefe de estado ideologicamente contrário a sua existência deveria fazer era convocar o parceiro comercial para rever as regras e propor uma saída honesta. Mas não, no melhor estilo do populismo golpista, Morales rasgou as regras da OMC e golpeou a soberania brasileira.
Contudo, o grosseiro da situação não foi só o arremedo de ação chavista/castrista de Morales, o absurdo de tudo foi a reação do governo brasileiro e aqui entra o lado prejudicial da conveniência ideológica. Nosso governo agiu com naturalidade, como se o dinheiro da Petrobrás, o patrimônio do povo brasileiro, portanto, significasse menos para nós do que o gás para os bolivianos. Ora, se é direito e dever do chefe boliviano defender os bens de sua nação, como nos fez crer Lula, não seria também direito e dever de Lula defender os nossos bens? Os bolivianos têm mais razão do que os brasileiros? Que ideologia é essa para a qual um caloteiro vale mais do que um cidadão honesto? Que ideologia é essa em que o bandido vira mocinho e o mocinho tem de ficar calado sob pena de virar bandido? HÁ BRAÇOS!
A MORTE É CEGA!
Dizem por aí que a morte é cega, não escolhe os frutos que tem de derrubar com sua foice amoladíssima. Mas além do ofício imparcial de carregar diariamente algumas almas, a morte aceita encomendas desde que a pessoa que encomendou a alma do desafortunado guie a foice cega para o escolhido. Em Uibaí, parece-nos que há alguém ajudando essa senhora indesejável a ceifar algumas vidas. De uns tempos para cá, corre o boato de que há uma lista com considerável número de eleitos a irem habitar o cemitério. Dizem ainda que os dois primeiros nomes da lista já estão riscados: Dedê e Tuti. Será que mão é essa que anda guiando a morte pelas ruas da canabrava?
UIBAIONLIXO!
A lista de discussão online dos uibaienses chamada de uibaionline perdeu a finalidade para a qual foi criada. O que se vê no correr da lista agora, salvo uma ou outra rara exceção, é lixo eletrônico de péssima qualidade. De uma hora para outra, os debatedores tão conscientes e aguerridos parece que viraram debilóides, passaram a enviar panfletos partidários copiados da internete e piadinhas idiotas. Será onde anda a inteligência e o senso crítico dos micreiros canabrabeiros?
PRAÇA INQUIETA- II
Uibaí se prepara para o Praça Inquieta-II. O Praça Inquieta foi um evento político e cultural, de grande sucesso, organizado pela turma do Boca do Inferno, da Ceubras e pela juventude de Uibaí, em janeiro de 2003, com a finalidade de tirar a cidade do marasmo político-cultural em que se encontrava. Havia pelo menos dez anos sem Seac em Uibaí, as casas de estudantes estavam abandonadas e em profunda crise de identidade, a preocupação ecológica estava morta e a participação política se resumia à mediocridade partidária. O Praça Inquieta atingiu em cheio essas questões de tal forma que hoje podemos pensar um Uibaí antes e um depois daquele evento. Depois do Praça Inquieta, as casas de estudantes se renovaram, houve o Uibaí tem sede, a oitava Seac, surgiram novas casas de estudantes, jornaizinhos novos. Publicações, Grêmio Cultural, grupos de teatro, grupo de cidadania, retomaram-se as preocupações ecológicas! O Praça Inquieta marcou a retomada da preocupação com os movimentos políticos e culturais em Uibaí, que estavam abafados pelo partidarismo e pela mentalidade política eleitoreira de resultados. Acreditamos que a retomada desse importante evento, com a edição do Praça Inquieta II, vai aprofundar ainda mais a contribuição com a cultura e política em nossa terra!
POETAGEM
LIBIDO:
BEIJO DE BUNDA DA LIBÉLULA
NA IMAGEM DE NARCISO.
(RUI DE OLIVEIRA)



BAR CULTURAL

Para Helga Oliveira Machado.

Esta é uma daquelas idéias que a gente se sentiria feliz se alguém copiasse e saísse à frente para realizá-la. Imaginem comigo a existência de um singelo imóvel na Praça Velha ou Nova de Uibaí com o nome Bar Cultural, acompanhado das subscrições: Aqui você pode encher a cara de conhecimento! Aqui você pode indagar o quanto quiser sobre a existência, sobre o mundo, a vida, o amor, a arte... E não precisa pagar a conta!
O bar seria tradicional, quer dizer, com um vão cheio de mesas, tendo ao fundo o balcão. Por trás do balcão, o atendente pronto a servir os freqüentadores. Nas paredes, no lugar de cartazes de loiras oferecendo cervejas, teríamos cartazes de escritores e escritoras das mais distintas lavras. Nas prateleiras, em vez de bebidas variadas, livros e mais livros. Livros, livros, livros... De todos os calibres! Literatura: poesia, romances, teorias literárias; Filosofia em variadas correntes, Política, Antropologia, Psicologia, Psicanálise, Lingüística, Semiótica e demais ciências humanas; curiosidades, cultura mundial, e mais e mais e mais...
Então, me acompanhem, caros leitores, nessa viagem imaginária: entra um velho freguês no bar e o atendente corre ao encontro dele:
- Vai de que hoje, seu Gleissom?
-Hoje não estou bem, quero encher a cara de Fernando Pessoa. Traga aí uma dose bem grande do Livro do Desassossego e uma porçãozinha de Cioran para tirar o gosto!
Aí o atendente, como todo bom barman, dá aquela sugestão eivada de experiência:
- Pelo seu estado, eu recomendaria uma talagada sarada de O Guardador de Rebanhos! E Cioran já foi servido na mesa de dona Daiane, ao lado. Temos como alternativa As Dores do Mundo, de Schopenhauer, que está desocupado ali na mesa de Popoca. Se não for do agrado, o senhor poderá escolher aqui no nosso cardápio algum escritor ultra-romântico como acompanhamento.
No Bar Cultural seria assim, no dia em que o Clube Canabrava anunciasse uma Noite de Seresta, o bar anunciaria uma Noite de Machado de Assis. Na semana em que o Voz do Povo anunciasse o Baile da Saudade, o bar anunciaria o Corpo de Baile, de Guimarães Rosa. Na medida em que nos outros bares se toma uma ordinária Seleta, no Bar Cultural se consumiria a melhor Seleta de Drummond, a Seleta de Bandeira, a de Ruben Braga, a de Mário, a de Oswald, a de Manoel de Barros, a de Leminski, entre muitas opções. Lá estaria sempre acessível a melhor safra de Cecília, Clarice, Raquel, Lígia, Ana Cristina César... Isso sem contar com as Raízes locais: Pita, Enoch, Valmir, Bebeto, Pedro Lopes e aqueles miseráveis do Boca do Inferno, entre tantos.
Esse bar seria a salvação? Claro que não, mas muita gente sairia Em Busca do Tempo Perdido ao descobrir que Proust cura qualquer dor da alma, que Cecília faz flutuar, que Manoel de Barros nos recriancifica. Que Dostoiévski limpa mais o espírito do que uma garrafa de Chave de Ouro. Aliás, chaves de ouro só estariam mesmo à disposição nos sonetos parnasianos oferecidos de brinde aos freqüentadores da casa.
Aí, todo dia teríamos o bar cheio. O enleio, o eu leio. As mesas propagando doces e barulhentas indagas; e recitais e happenings e delírios e risadas e suspiros... Nos arranca-rabos, muitos palavrões e quão divertidos de se ouvir: Seu sartriano maluco! Sai pra lá com sua ambigüidade machadiana, liliputiano duma figa! Não suporto esse seu bovarismo! Trator cartesiano! Niilista! Balzaquiana indigesta! Desapareça com esse caráter macunaímico! Isso é um delírio foucaultiano, uma fraqueza pós-estruturalista! Uma frigidez positivista. Filhote de Maquiavel, terrorista bakuniniano! Macaquinho pós-moderno, pereba edipiana! Isso é delírio interpretativo... Seria divertido sim, porque as pessoas certamente não seriam mais as mesmas e toda a hostilidade não passaria obviamente de um jogo: o gozoso jogo do saber, do saber-se. O Ensaio Sobre a Cegueira. O ir do verme ao ver-me, o transver, o desver... Seria um sonho muito bom.
Pois bem, amigos leitores, antes de escrever este texto havia tomado uma boa dose de Eça de Queiroz. Tinha consumido avidamente o conto José Matias. Sei que não tem muito a ver (ou teria?), mas experimentem. Se for convincente a gente coloca no cardápio do Bar Cultural. Há braços! (alan oliveira machado)
EU E O BODE PRETO
Para Javan
Vou contar uma historinha dessas que acontecem e não tem explicação. O ano, não tenho em lembrança, mas era no tempo em que eu andava com um "badogue" no pescoço, malinando em tudo que via nas "roças dos outros".No cair de certa tarde, fui olhar umas arapucas na beira do capão, pra ver se tinha faturado o tira-gosto do jantar. Não é que logo depois de atravessar a garrancheira encontrei a primeira arapuca quebrada! Proferi alguns verbetes das trevas amaldiçoando o filho de Maria que destruiu meu artefato, além de pegar meu tira-gosto. Corri para outra arapuca, escondida logo adiante. Chegando ao local vi que tinha uma presa, com ligeireza peguei-a, porém quando levantei as vistas, dei de cara com um pai de chiqueiro fedorento, de uns dois metros de altura, preto igual café. Foi um susto tão grande que deixei meu petisco ir embora. Sai daqui bicho maldito filho d'um..., gritei! O bode deu um grande berro-feio de tirar qualquer cristão do chão, soltei uma balada no meio da testa, o bicho levantou as duas mãos empinando o corpo. Vou matar esse desgramado, falei comigo mesmo. Naquele mesmo instante veio uma voz tremula e soluçante: - Tu mata ninguém, seu porra! Já arrepiado, procurei por todos os lados, arregalando os olhos. - Quem falou!? Não vi ninguém e nem mais o bode, o bicho sumiu. Naquela mesma hora todo o medo do mundo grudou em minhas pernas, gelei, não conseguia ouvir mais nada, somente o som das batidas do meu coração. Saí em desabalada carreira por "cima de pau e pedra". Quando alcancei a estrada, já estafado, para minha surpresa e desespero o bicho estava lá: - Tá cum medo, seu peste? - interrogou o bode. Naquela hora, juro pra vocês, nem avião me pegava, corri e só parei uns seis quilômetros depois, lá em casa. As canelas estavam todas rasgadas da caatinga. Camiseta não tinha mais, chinelo só o do pé direito. Contei o ocorrido na minha caçada e o pessoal de casa não acreditou. O pior é que levei uma surra danada dos meus pais e ainda tive de tomar banho naquele dia. Foi assim que tudo aconteceu, quem duvidar da minha história pergunte a João que também encontrou esse mesmo bode. É isso...
( baltazar lopes cavalcante)

CIDADANIA E REVOLUÇÃO


“Mesmo quando fazem uma greve pela melhoria do horário, do salário ou das condições de trabalho, os trabalhadores não podem deixar de sentir, em seu intimo, que toda luta é iluminada por um objetivo final...”
(Antônio Gramsci, revolucionário italiano)


Nossos tempos são tempos de desilusão. O individualismo, o egoísmo – valores predominantes no capitalismo – avançam e consideram retrocesso, atraso, antiquado tudo aquilo que fala de coletividade, de justiça social, de outra sociedade. O sonho, assim como a luta por uma sociedade mais justa, sem exploração do ser humano pelo seu semelhante, onde direitos sociais e democracia não sejam privilégios dos que podem ter acesso ao mercado soa como utopia. Falas sobre isso aparecem como ultrapassadas.
O Congresso nacional imerso na lama, escândalo após escândalo, passa a ser defendido por gente de esquerda: os petistas e pecedobistas, ao lado de seus novos companheiros – inimigos históricos da classe trabalhadora, desde antes do regime militar. Até parlamentares dissidentes desses segmentos, os tais radicais, quando um Movimento Social se defende lá dentro do congresso da única coisa que o Estado brasileiro se dispõe a oferecer, a violência, dizem que aquela resposta não é luta. Aí eu digo: o quebra-quebra de autodefesa dos Sem Terra dentro do Congresso não é violência, é luta! O latifúndio, a fome, a morte de lideranças camponesas sem um mover de palha da “justiça”, a inanição de crianças brasileiras, a exclusão social, isso sim é VIOLÊNCIA!
Agora, o líder populista, ex-operário, permanece intocável nas pesquisas eleitorais, mesmo depois da prática ter mostrado que o PT não governa para mudar o Brasil, mas mudou para governar o Brasil (para a burguesia, pelo que se vê). Mesmo depois de quatro anos de reprodução da ordem burguesa na sua violenta forma neoliberal, mesmo depois de mais quatro anos, a miséria, a exclusão, o extermínio de pobres, o latifúndio, o capitalismo continuam intocáveis. O máximo que o mais avançado governo de “todos” (inclusive e principalmente do capital) consegue fazer é substituir a miséria insuportável pela pobreza sob controle.
Diante disso tudo, a maior parte da esquerda se cala, tímida, desarticulada ensaiando novos passos no horizonte ainda turvo. Parte dela dobra as bandeiras históricas da classe trabalhadora e as guarda no baú da tradição passada. Veste-se de verde, de rosa, de preto e de branco (nesses dias de verde amarelo) sem qualquer crítica rigorosa às suas camisas, sem perceber que ao lado do caráter progressista delas, o que as acompanha é a manutenção e aperfeiçoamento da ordem e, portanto, a emancipação de coisa nenhuma. Ouvimos, repetidamente, o discurso da cidadania, não da Cidadania Combativa, voltada para conquistas pontuais e exigências do dia a dia, que são parte de um percalço maior no acúmulo político de uma luta mais geral pela transformação radical da sociedade. O que prevalece é a cidadania positiva, que tanto faz vir da boca de um PFL fascista, do que há de mais arcaico e racista na Bahia, quanto do bico de um tucano travestido de moderno ou da oralidade governista, cheia de mau hálito. A cidadania com que se convive é voltada para a luta dentro da ordem, a luta tímida por direitos, sem almejar a transformação da ordem. Essa cidadania, embora se apresente como libertadora, tem a função apenas de aperfeiçoar a ordem vigente e pode desorientar a luta daquilo que ela realmente deveria propor: a verdadeira democracia ( e não essa democracia em que “se vota de quatro em quatro anos para mudar de dono”), uma efetiva justiça (e não esse poder judiciário que condena pobres e acalenta ricos), a liberdade real (não essa liberdade de não ter nada, de ter que se vender para algum capitalista que precisa de mão de obra, de não ter terra, teto, saúde, educação, condições básicas para uma vida com DIGNIDADE).
Nossos tempos são duros e tenebrosos. Tempos conservadores. Mas não são os primeiros. É preciso sim participar e construir a luta por cidadania, por melhorias básicas de vida, por direitos sociais, mas, além disso, é preciso reafirmar certos valores: a necessidade de que o oriente dessas lutas não seja o imediatismo; não seja a consolidação de uma paz social inexistente e impossível em um sistema cuja natureza é a guerra e a exclusão. É preciso que o oriente das lutas seja exatamente a necessidade de se revolucionar a sociedade, para que se transformem radicalmente as relações sociais, não necessariamente com o intuito de criar o paraíso na terra, mas sim de criar um sistema que esteja voltado para a satisfação das necessidades de vida e dignidade de todos e não para o lucro e o enriquecimento ilimitado de uns poucos. Cidadania é preciso, REVOLUÇÃO mais ainda.

flávio dantas martins, Feira de Santana, 22 de junho de 2006.


MEMÓRIAS DE UMA RUA ABANDONADA

Aos eternos moradores do Cascalho

O Cascalho é uma rua curiosa. Por um momento a gente pensa que ela é extensão da Rua Grande, já que o leito do Riacho Canabrava segue sinuoso pelos fundos dos quintais, cruza a Matinha e vai despontar lá adiante próximo à entrada do Cancarote. Se realmente fosse a continuidade da Rua da Igreja teríamos de dizer, para fazer justiça, que ela é a continuidade abandonada em todos os sentidos. Entretanto, como todo abandonado aprende a sobreviver, a gente vai ver que o Cascalho sempre teve abundância de vida e de tudo.
Até os anos oitenta, quando o candeeiro ainda era uma necessidade para muitos, o cidadão podia encontrar na esquina do prédio velho, a fábrica de seu Zuza Flandeiro sortida de vários modelos dessas rústicas luminárias. Podia também encomendar roupas da moda à costureira Bernadete. Descendo mais um pouco, ao lado de Belita de Ricarte, quem precisasse de algum móvel poderia encomendá-lo na marcenaria de Argeu. Passando uma ou duas casas havia a sapataria de Mané Sapateiro, aliás, a rua contava ainda com a sapataria de Garibalde, em frente à casa de Sinezão.
Tamboretes tembém você encomendava no Cascalho, lá na tamboreteria de Deblande, em frente à casa de Dona Maroca. Ali se encontravam os mais resistentes tamboretes feitos de São Joeiro maduro. Deblande, com mais de um metro e noventa de altura, nas horas vagas atuava como juiz de futebol, no único campo da cidade, também privilégio do Cascalho. (nessa época ainda nem existia o Betonicão, lá na saída pra Hidrolândia) O filho da velha Cândia era um juiz desprovido de apito, mas durante o jogo carregava uma peixeira feita de Corneta engastaiada na cintura, proporcional ao seu tamanho. Mediante aquela prova concreta de autoridade, ninguém questionava a arbitragem. Quem teve o prazer de assistir aos sensacionais jogos do Fluminense de Uibaí, com Chiquinho de Jaime no gol, Sinozinho, João de Odetina, Quinquinha no ataque e Chiquinho de Paulo zagueirão, principalmente aos treinos, sabe do que eu estou falando. Creio que Deblandão só atuava nos treinos.
Desculpem-me a irresistível digressão, estava falando de tamboretes. Pois bem, quem não quisesse os tamboretes de Deblande poderia encomendá-los em Leno Sanfoneiro, mais embaixo, próximo à casa de Domingo Dodô, este, um maluco que descia o cascalho com uma bicicleta barra circular em toda a velocidade, atravessando tudo quanto é batume de mato, indo parar na porta da casa de Leno, com os dois pneus furados, cravejados de espinhos de malva de garrote. Era uma diversão meio sem lógica, mas maluquice dispensa lógica. Voltando novamente aos tamboretes, Leno, além de fabricar esses importantes utensílios, ainda fazia a fezinha na sanfona, animando uma ou outra farra.
Da casa de Dona Maroca dava pra ver quase que frontalmente, entre a saída para o Janjão e a entrada para a Veredinha, a venda de Dona Antônia, mãe de Marinezão, Tineco, entre outros. Era uma birosquinha, mistura de venda e bar. A velha administrava a família com pulso firme, num sistema de matriarcado absoluto. A ela pertencia ainda a única casa de farinha da cidade, também no Cascalho, pouco abaixo do Curral da Matança.
O Curral da Matança era um curral velho feito de madeira de lei no qual os bois ficavam recolhidos esperando o abate. Dia de abate dava uma mistura de medo, prazer e aventura ver aqueles bichos furiosos, como que pressentindo a morte, sendo laçados pelos vaqueiros Jaimim e Domingo Paieiro. A meninada ficava atônita diante de homens domando a força bruta, com igual brutalidade. Tudo ali no Cascalho, o bicho imobilizado levando uma machadada no cachaço ou um tirão de rifle bem no meio da testa.
Subindo a rua, a partir do Curral da Matança, ao lado da casa de Deblande havia o chiqueiro de Verneú, um criatório grande que misturava caprinos, ovinos e porcos de raças variadas: Duroc, Piau, Baé, Beradeiro. O cheiro não era dos mais agradáveis, porém, em manhã de venda e capa de porco era divertido ficar trepado na cerca de sisal vendo os homens estabanados atrás dos bichos. João Capa Porca afiando o canivete e os gritos do suíno sendo emasculado ou esterilizado.O porco sem bagos saia meio envergonhado e a porca sem ovários meio esguia e acanhada. Na pesagem havia cada porcona de quinze arroubas desafiando os pesos da balança que era de se admirar. Hoje, a travessa que liga o Cascalho àquela construção faraônica inacabada, que dizem ser de um ex-padre, ocupa exatamente parte do espaço do antigo Chiqueiro de Verneú.
Mais acima, muito depois da casa de Dona Nair de Valdivino, onde de manhã cedo se buscava o leite fresquinho saído da ordenha, quase no meio da Rua do Cascalho, tínhamos o mais generoso pomar de Uibaí, a casa de Dona Mariinha de Leandro, com um cercado imenso sortido das mais variadas fruteiras. Na casa da bondosa e paciente Dona Mariinha sempre era tempo de alguma coisa. Quando não era de manga, era de pinha, quando não tinha pinha, tinha caju ou serigüela ou côco. A meninada se fartava em cima dos pés de manga-mamão, nos pés daquela manguinha miúda fiapenta e deliciosa, debaixo dos cajueiros ou atirando pedras nos coqueiros muito altos, em busca de cocos velados.
Para quem achava que a vida não deveria ter muita graça, numa rua abandonada como aquela, aviso agora que nem falei do parque de vaquejadas que existiu por ali, nem do alarido de carros e cavalos com toda sorte de gente vinda dos povoados no dia da feira. Nem das manadas bovinas que se encontravam a caminho do pasto, obrigando os marruás dos rebanhos a encenarem um espetacular duelo de chifres e forças em plena manhã de primavera. Nem das vacas paridas escorraçando transeuntes desavisados e botando gente nos pára-peitos de portas e janelas; nem em Zé de Nica cantarolando pela rua suas canções de Roberto Carlos, alheio a tudo e a todos ou em Hora é Esta, saudoso personagem, entoando diuturnamente seu refrão, como um relógio cuco: -A hora é esta! Ou em seu Genéis, pai de Dona Zilda e de Dimari, um homem de força descomunal que, já sexagenário, arrastava Cascalho acima uma árvore seca inteira, trazida sabe-se lá de qual distante capoeira, para cortar no machado diante do ranchinho em que morava; ou no negro Soizinha, pagodeiro, cheio de manha africana e de superlativos... Figura simpaticíssima. Muito há do que se falar sobre aquela rua de minha infância e adolescência, a única atualmente a contar com juazeiros frondosos a derramar suas sombras frescas sobre o abafado da tarde.
O nome pomposo de general, o povo rejeitou e fez bem. Rua que tem vida não merece nome de general, a bem da verdade, nome nenhum que cheire a imposição. Rua que tem vida se autonomeia. E é isso que acontece, não se vê gente falando na rua General Costa e Silva. Prefere-se a metonímia feita da matéria que talvez mais importuna o povo: o cascalho pedregoso que levanta uma poeira branca e incômoda, a medida em que os carros vão passando. Eis a Rua do Cascalho que também aceita ser chamada de Rua Pé de Galinha, nome inventado por Ri de Valdivino, quando este observou corretamente que a rua se abria como um pé de galinha: um dedo seguindo em direção ao Mane Janjão, outro seguindo para a Veredinha e um último indo rumo a Boca Dágua.
(alan oliveira machado, abril de 2006)



VACA AZUL DESMAMANDO

Veja ilustre leitor
Como a coisa tá mudando
Antes era só tiroteio,
Perseguição e desmando
Agora tem Audiência
E Réuzinho reclamando
Com as porretadas do povo
Desfazendo os seus plano
A coisa tá mesmo “feia”
A Vaca Azul desmamando
Dorimal e outros bezerros
Andam na rua berrando:
Meu Deu$, se o rumo mudar
O que vai $er do meu bando?
Promotor já disse logo:
Não quero conta faltando!
Se gastou e não se viu
O cabra entra pelo cano
Responsabilidade fiscal
Moralidade no ramo
Se quiser administrar
Tem que sair proclamando
O que o poder tá fazendo
O que o poder tá gastando
O que faltou, devolver!
O que sobrou, aplicando!
Se vacilar vai perder
O povo pega o comando
E bota pau pra comer
Com a justiça apoiando.
Tomara seja verdade
E eu não esteja sonhando
(J.M. da Silva)