24 julho 2010

O PAROXISMO AMOROSO


Segundo o Dicionário Aurélio Séc. XXI, fanático é aquele que se considera inspirado por uma divindade, pelo espírito divino; iluminado; que tem zelo religioso cego, excessivo; Fanatismo, poema de Florbela Espanca, poeta lusitana, que segue a forma fixa de soneto, reflete o sentimento amoroso exasperado em que o eu apresenta-se completamente tomado pelo outro, produzindo quase que a neutralização total do eu. Logo na primeira estrofe do soneto, a voz poética declara-se perdida, mas essa perdição não significa a falta de um caminho, ou a indecisão com relação a que rumo tomar, pelo contrário, reflete uma alma neutralizada, fechada para si na medida em que só consegue perceber o outro.

Minh’alma de sonhar-te anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não é sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Na primeira estrofe acima composta de frases feitas, comuns ao discurso amoroso: sonhar contigo, andar cego de amor, razão do meu viver, a poeta estabelece uma intensificação do estado de espírito natural ao sujeito do amor, diga-se a propósito, conforme Fernando Pessoa, estado em que as declarações amorosas ganham nuances ridículas, necessariamente ridículas, mas no qual ainda resta uma distinção entre o eu amoroso e o outro amado. No caso, o outro é a razão do viver do eu amoroso. Até o terceiro verso do poema, ainda se nota a separação entre o amante e o amado. A intensificação desse sentimento, entretanto, anula completamente o eu amoroso preenchendo-o com o outro, objeto do amor, como podemos perceber no enfático último verso da estrofe a que estamos nos referindo: Pois que tu és já toda a minha vida! Nesse caso, o eu dá lugar ao outro e apenas o outro existe ou necessita existir. Esse movimento de anulação da duplicidade que compõe o jogo amoroso ganha então tinturas de fanatismo.
O fanatismo, por apagar o eu amoroso, ganha tons de loucura, de ausência de critérios para julgar o mundo ao redor, aliás, o objeto amoroso passa a ser o mundo, porém um mundo restrito, estreito,  repetitivo e limitado que só o fanático, na sua ânsia louca, não o percebe como tal. Pelo contrário, esse ente, entorpecido pelo desejo amoroso, sente o outro como algo profundo, inexplicável, um mistério eterno a ser desvendado.

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo o meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma coisa tantas vezes dita!

A segunda estrofe acima confirma a completa entrega a um sentimento obsessivo, fanático. Aqui, validando o conceito oferecido pelo Aurélio, o sentimento  alcança a devoção cega. O outro é algo divino, o mistério do mundo, um livro enigmático ao qual se deve dirigir a vida e os olhos incontáveis vezes em busca de conforto, porque o outro é tudo, é Deus.

Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

Para o eu amoroso, tomado pelo fanatismo, só há uma verdade: o outro inflacionado, hiper-real que ele criou e o qual agora é o sentido da sua existência. Por esse ângulo, nada que não represente essa totalidade será digno de crédito. Toda conclusão que contrarie as expectativas desse eu fanático, a ele será motivo de riso, pois  ele está possuído e é possuidor dessa força eterna a qual deve adorar e seguir como um Deus: o outro é o Princípio e Fim!...

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!..."

Vê-se, assim, o fechamento categórico do soneto com a mais genuína declaração de fanatismo religioso. O objeto do amor adorado e celebrado como o princípio e o fim de tudo. O fanatismo amoroso descrito no poema, reflete a natureza ensimesmada do eu poético que se perdeu no sentimento amoroso, encontrando tão somente o outro em todo  e qualquer lugar para onde dirige o seu espírito.  HÁ BRAÇOS!

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