15 julho 2010

BOCA DO INFERNO-57: O OURO DE MURIBECA- I

A algazarra de pardais na copa do coqueiro ao lado da casa contrastava com o leque solar que se abria lentamente no horizonte. A manhã se anunciava mais uma vez no sertão. Segunda-feira. Ali é dia de feira, dia de repor a dispensa da semana. Ele sarrabuiou água fria no rosto, depois foi cutucar o braseiro sob a trempe do fogão de lenha com o tino de passar um café fresco. Feito isso, rodou a tramela da porta dos fundos e dali mesmo do batente atiçou umas quatro mãos de milho às galinhas que já tumultuam o terreiro. Mais nada. Ele era ele! Só ele! Ele só. Sem nome nem nada. Apenas um homem solitário, rústico e desinteressado de lordezas. O olhar morto, antigo como a casa de taipa que o abrigava,  não carregava mais do que amarguras, esforços inúteis e rompantes tímidos pela sobrevivência. Passou a vida inteira correndo trecho pela serra em busca de uns tais entaipados, de um tal ouro de Muribeca. Perdeu tudo: família, esposa, amigos. Tudo e todos em função de seus delírios.
A história de Muribeca correu solta por muito tempo naquele pedaço do sertão. O homem sabia que se tratava da história de um senhor português, dono de minas de ouro nas lavras de um povoado da chapada, que sobreviveu a uma rebelião selvagem dos escravos da mina próxima à casa grande. Consta que esse senhor, conhecido pela alcunha de Coronel Moreira, chamado pelos escravos de Muribeca, embrenhou com a família no bravio da caatinga a fim de escapar da fúria de uma centena de negros revoltados. Arrastou consigo o que pode: a mulher, duas filhas e seis mulas com bruacas abarrotadas de ouro.  Perdido na brenha das matas espinhosas, viu tombar os membros da família um a um com o sangue fervendo de malária. Antes de morrer abatido pela doença tratou de esconder seu  ouro em lugar longe da vista dos cobiçadores.

Essa história tanto rondou a cabeça do homem que acabou enredando sua vida. Tivera aos 25 anos um sonho revelador... Seu destino, sua desgraça. No sonho, aparecia um velho barbudo com um pote debaixo do braço cheio de moedas de ouro. O velho dizia que aquilo seria dele, se ele não desistisse de buscar, e antes de se apagar como névoa no sonho, indicou a direção da serra. Aquela imensidão de serra. Desde que tivera o maldito sonho não descansara. Viveu a rodar por grotas, boqueirões e encostas. Garimpou cristais, desavenças, doenças silvestres e até mesmo veneno de cobra, mas nada de entaipado, nada de pote, nada de ouro. A esposa desistiu de sofrer com a ausência do marido e com sua presença delirante, encasquetada, ensimesmada, sem outro assunto que não o sonho, o ouro, os entaipados. O velho disse, o velho... Ele veio e disse e eu vou achar... É meu ele disse . Um potão cheio. Guenta, isso é pouco leite perto do que vem. O velho disse, o velho barbudo. Muribeca! Assim atravessava as madrugadas num entra e sai danado do casebre, picando fumo, tomando café, pitando e matutando onde mais poderia estar essa dádiva que o velho lhe revelou num sonho. Não desistiria nunca, jamais. Não era homem de dar pra trás, de correr do destino.
Foi então que numa tarde cismou que a coisa tava enterrada no boqueirão do urso. Juntou a capanga com uma socadeira, assoviou para o cachorro magro e mais uma vez bateu perna para a serra. A noite já ia alta. o breu engoliu tudo . Só silvos, ruidos, zumbidos e gorjeios estranhos lhe faziam companhia. A caatinga braba e o pedregulho iam sendo vencidas com sofreguidão por aquela mente determinada, por aquela alma incutida.

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