05 outubro 2010

MEUS ÓCULOS SEM LENTES

Ontem sai de casa meio apressado para o trabalho. Livros e agenda debaixo do braço, uma maçã mordida na mão esquerda e os óculos... Cadê os óculos? Avistei-os sobre um rádio à válvula A Voz de Ouro que temos aqui em casa. Coisa rara o rádio de madeira envernizada com um painel de tecido enviesado por fios dourados. Funciona perfeitamente esse aparato que para os jovens de hoje parece coisa dos tempos das cavernas. Sim, mas ia falar mesmo dos óculos: tomei-os apressado, os pus sobre o nariz e me fui mordendo a maçã sob uma cinza manhã de segunda-feira.
A manhã já ia alta. Eu conversava com pessoas... Atendia outras sem me dar conta de que algo estava errado: os óculos estavam sem as duas lentes. A pequenina Sofia, a andarilha curiosa mais nova lá de casa os havia encontrado dando sopa na borda da mesa do computador e tentou desvendar o mistério daquele objeto que os adultos insistem em manter na frente dos olhos tornando-os seres estranhos e diferentes dela.
Em dado momento, depois de um movimento brusco da cabeça fui ajustar os óculos no rosto e me dei conta da ausência das lentes. Fiquei desconcertado. Como não percebi antes? Acho que os óculos psicológicos, aqueles inventados mentalmente pelo uso, encobriram a ausência de lentes. Mas o que pensaram as pessoas que atendi durante a manhã? Decerto devem ter imaginado que eu era uma versão do personagem de Luis Fernando Veríssimo no conto O nariz, no qual um dentista  "Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes mas uma sólida reputação como profissional e cidadão" resolveu usar um nariz postiço, daqueles que vêm com um aro de óculos e um bigodinho grudados, e criou o maior reboliço na família e nos espaços sociais que frequentava. Porém, nos tempos de agora as pessoas fazem ou convivem com tanta coisa esquisita e naturalizam tanta bizarrice que atendê-los com óculos sem lentes como fiz hoje, ao contrário do que aconteceu na narrativa instrutiva e divertida de  Veríssimo não causou espanto algum. Pelo menos foi o que constatei. Há braços!

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