11 dezembro 2010

UM NATAL DE LASCAR!

Ao lado, uma lapinha tradicional.
Todo mês de dezembro, já próximo ao Natal, descia num descampado ao lado da quadra onde eu morava em Brasília um helicóptero trazendo Papai Noel. Não faço ideia de onde ele deixava o trenó e as renas. Não sei também a que diabos servia aquela encenação mesquinha de boa vontade natalina. O velhinho grisalho nunca trazia presentes. Melhor, jamais soube de alguém que tivesse sido agraciado com a realização de um pedido de natal naquele dia poeirento de dezembro.
O Papai Noel que vinha em uma aeronave fazendo levantar uma terrível nuvem de poeira vermelha apenas subia em um palanque improvisado e jogava algumas mãos de balinhas às crianças que se apertavam em meio ao relento espremendo sonhos e desejos inocentes. Depois pegava nas mãos das crianças sufocadas na barra do palanque mendigando a sua atenção. Após alguns minutos de tumulto e mãos estiradas faiscando sonhos infantis, o Papai Noel se retirava, caia fora em seu treinó tecnológico. Resumia-se a isso a porcaria do Natal naquela quadra. Era tudo que o poder público podia fazer pela molecada na ilustre data.
Em mim palpitava uma vontade desesperada de ir ver o tal Papai Noel. Quem entende criança! Minha mãe sempre zelosa jamais permitia. Sozinho, não! No meio daquele rigor de sol? Nem ver! E aquele tanto de moleque de que não se sabe a procedência? Pode desistir! Eu me contentava em assistir sentado no muro o rasante do helicóptero vermelho seguindo para o descampado ali nas proximidades.
Todo ano, minha mãe inventava de fazer uma lapinha no canto da sala. O ambiente ficava com cheiro de mato até janeiro, sem contar que o empreendimento natalino de minha mãe me impossibilitava de brincar com alguns de meus bonequinhos enquanto a tal lapinha estivesse armada e eles estivessem ali imóveis sobre uma areiazinha branca espalhada delicadamente na frente de uma imensa montanha feita de papel acinzentado, chapiscado de tinta colorida e enfeitado com flores, ramos e folhagens do cerrado. O cheiro de mato não era ruim, era o cheiro do natal lá de casa, mas aquele Jesus com a tinta descascando ali enfiado em uma cavidade da montanha de papel, sufocado por parte dos meus bonequinhos, dava dó.
Certa vez desobedeci minha mãe. Acho que era 23 de dezembro. Ao ver o voo rasante do helicóptero saí de mansinho, passei pela sala com cheiro de mato e ganhei a rua, com a cara voltada para cima, seguindo a aeronave noelina. Já na esquina, avistei o vão de barro vermelho sobre o qual o helicóptero pairava buscando um pouso suave. Uma nuvem de poeira se formava e encobria metade da multidão que esperava o mais ilustre representante comercial do espírito natalino. 
Como já era costume, o barbudo de roupa vermelha subiu no palco improvisado, atirou umas mãos de balinhas sobre a meninada e ficou lá de cima assistindo o tumulto. E o sufoco para conseguir um mísero bombom parecia mesmo com uma brincadeira perversa que fazíamos na rua, chamada murro doido. Punha-se um doce qualquer no chão e fechava-se um bolo de meninos em cima. Quem pegasse o doce levaria murro de todos até alcançar uma zona neutra pré-estabelecida. Meninos fazem o diabo por um desafio! E esse era o espírito da meninada da minha rua: o doce não importava, o que valia era o desafio de escapar dos murros e chegar à zona neutra.
Mas eu falava do tumulto da molecada disputando as balinhas jogadas pelo Papai Noel mequetrefe que vinha à minha quadra todo natal. Senti naquele dia que seria a minha chance. Mergulhei em meio à meninada espremida ao pé do palanque. De repente, veio uma chuva de balinhas por cima de mim e  a coisa apertou. Quando me dei conta estava perdido entre mãos desesperadas, cabeças suadas, pernas trançadas e braços agressivos. Enfiei a mão o mais que pude na direção do solo e sentindo que havia pegado algo, me desentranhei com dificuldade do amontoado de meninos. Quando pude abrir a mão não encontrei mais que um bocado de terra vermelha e papeis de bombom. Nenhuma droga de balinha. Tempo perdido...  Esforço terrível e inútil.
Olhei na direção do palanque, o cara disfarçado de bom velhinho estava sorrindo e pegando na mão das crianças desesperadas ali espremidas. Elas pediam presentes, mais bombons ou algo que o valha. Firmei uma perna como alavanca e segui na direção da borda do palanque. Pelo menos pegaria na mão de Papai Noel. Quem sabe ele não ia com a minha cara e me dava um presente ou alguns chicletes? Atravessei três metros de tumulto numa eternidade. Quando alcancei a barra frontal do palco segurei firme e estendi meu braço esquerdo. Papai Noel vinha lá do canto do palco entregando a mão aos braços estendidos, quando chegou a minha vez o infeliz olhou na minha cara que estava borrada de terra vermelha e retirou a mão. Aquilo foi demais. Tanto esforço para obter um gesto de desprezo descarado daquele velho pão duro. Belo Natal! Em vez de neve, poeira... Em vez de presente, desprezo... Em vez de alegria, humilhação e sofrimento.  Mas eu era do Conjunto D ( as ruas da minha quadra eram nomeadas por letras) e no Conjunto D a molecada tinha altivez. Era treinada naquele negócio de murro doido. Injustiça não saia barato. Sujo e magoado, escapei sofregamente da multidão. Ao alcançar uma posição fora do amontoado de crianças respirei e olhei para o chão procurando uma pedra.  Encontrei uma pepita de bom tamanho de um cristal amarelado e fosco.  Quando olhei para o palanque o Papai Noel pão duro e sacana havia virado as costas para descer a escada rumo ao helicóptero, eu aproveitei o momento e fiz justiça: dei uma pedrada certeira bem no meio das costas do infeliz. Ele arqueou as costas para conter a dor e se apressou a sair dali. Nunca me arrependi da pedrada! Ainda bem que minha mãe sequer chegou a imaginar que eu passei por tal aventura.  Mas foi bem feito, afinal não se faz o que ele fez com uma criança. Há braços!

Nenhum comentário: