30 dezembro 2010

UM GOSTO MUITO ESPECIAL

     Para Edmundo Agnelo e Dermival Agnelo

O emendar de cantos de galos se estendia como uma corrente sonora que tomava conta do povoado. Era madrugada na vila de Buqueirão da Serra. Meu avô se livrava da cama  já reclamando de alguma coisa. Minha avó, mais ágil, não passava de um vulto ariando um imenso tacho de cobre. Entoava baixo, para si mesma, alguma ladainha. Meu avô amargo, ela doce. Minha avó doceira e dócil, o marido lavrador, mal humorado. Apesar do nome, meu avô em nada lembrava um cordeirinho. Fato é que essa antítese primal gerou uma família. Entre os dois temperamentos germinaram outros e as alegrias e desgostos foram se alternando.
O velho levou o chapéu de massa à cabeça e atravessou a Rua Nova rumo à praça da feira. Passo apressado para se livrar da concorrência. Sempre o primeiro a chegar às bancas de carne levava o melhor jornal. É que àquela altura dos anos cinquenta a existência de rádio ou jornal no lugarejo de pé de serra era precária e meu avô, ao que parece, herdou a curiosidade e a ansiedade por leitura como a maioria dos descendentes de Isabel, filha do patriarca daquele pedaço de chão. Desde os anos quarenta cultivava o hábito de comprar a carne que vinha fartamente enrolada em folhas velhas de jornal. Ficava assistindo e orientando o açougueiro a enrolar o jornal na carne de modo que não estragasse as folhas. Chegando em casa desfazia a embrulho com zêlo até ter livre nas mãos duas ou três folhas inteiras, que botava para secar. Mais tarde leria uma a uma se deliciando das notícias publicadas há mais de cinco meses ou ano. Era um ritual, todas as tardes: escorava o tamborete na parede da frente da casa e abria sua preciosa folha de jornal, no que ia lendo lentamente e com alguma dificuldade até as vistas arriarem, atrapalhando a vontade. 
A leitura amenizava o mau humor do velho, todos já sabiam disso e preferiam não incomodá-lo, e torciam também para que as folhas manchadas de salmora alimentassem o ânimo dele até a próxima feira. Quando a leitura não dava até o fim da semana meu avô ralhava, implicava com os meninos, reclamava até do cheiro “enjoado” do doce de gergelim fervendo no tacho. Minha avó murmurava enquanto mexia o doce, pedia a Deus uma explicação para o destempero do marido.
O velho descobriu a mina de jornais vencidos quando passou a matar porcos para vender da feira da pracinha da vila. Na convivência com os açougueiros da Lagoa e da Roça de Dentro, negociava as sobras de jornal das bancas por tiras de toucinho. Às vezes voltava para casa com uma pequena pilha de folhas soltas dos diários que circulavam pela capital. Quando não havia jeito de faturar algumas para ler em casa, acabava comprando a carne dos comparsas de banca exigindo que a enrolassem em fartas folhas de jornal.
Certo final de feira, sem conseguir trocar uma tira sequer de toucinho pelo jornal de sempre, o velho desesperou-se. Não podia cometer a loucura de comprar carne apenas para ter o jornal. A feira tinha sido fraca e boa parte da carne de porco que levara voltaria para casa, tornando difícil justificar à mulher o gasto com carne. Voltou então com um terrível mau humor. Passou porta à dentro sem sequer olhar para um grupo de rapazes sentados na calçada vizinha, conversando e dando risadas. Já na cozinha, antes de a mulher dizer qualquer coisa, foi logo disparando:
Não agüento esses moços de hoje com essa rincheta e essa chincharra! Em vez de irem ajudar os pais na roça ficam alimpando calçadas dos outros, vigiando a vida alheia!
A mulher que mexia um tacho de doce de buriti na trempe improvisada no alpendre, levantou a cabeça e ficou tirando uma linha do marido, mas não disse nada. Então um cheiro forte de perfume Casa Blanca impregnou o ambiente e chegou às narinas do velho.
- Rum, hum, hum, que carniça é essa? – disse sem esperar resposta, saindo em direção ao quarto, no que entra encontra um dos netos, todo lorde, penteando o cabelo. Mais uma vez desabafou:
  - Não posso nem ver esses rapazes que passam o dia na frente do espelho com o pente enfiado no cabelo!
- Ôxe vô, hoje tem baile na Voz do Povo, é mode eu ir parecendo o quê?
-      Tá, mas precisa engomar a cara com brilhantina?
-      Não vô, mas todo mundo usa!
-      E onde arranjou essa goma e esse cheiro?
-      No armazém de seu Marcionilio!
O velho torceu a cara meio que desaprovando e disse antes de se retirar do quarto: - Seu Marcionilio tá botando a mocidade a perder!
O anoitecer morno não amenizou a inquietação do velho. Ele então foi ao gabinete do primo boticário, na Rua Grande, recentemente autorizado para a profissão de dentista, que já exercia, a fim de prosear e saber a quantas andava a política de Cazuzão e João Soares em Xique-xique. Na feira havia encontrado aquele parente montado num cavalo, com a voz trovejando, vindo da beira do rio e prometera passar no gabinete dele para se inteirar das novidades políticas.
Chegou ao gabinete do parente e o encontrou concentrado na leitura de um manual de Medicina Homeopática.
-      Entra primo! – estrondou a voz lá de dentro.
- Moço, assunta o atropelo... - disse meu avô com voz mansa ao passo que seguia em direção ao dentista, - Tem uns dois dias que não me aparece uma folha mode eu ler. Vai dando um nervoso do diacho!
- Pois isso não é problema! - disse o boticário levantando as vistas. Olha aqui esses Almanaques Capivarol que me arranjaram lá na beira do rio! Pode levar se quiser todos os volumes!
O velho arregalou os olhos, esboçou um leve sorriso, recolheu o pacote com uns seis Almaques Sadol e Capivarol agradecendo ao primo e sentou-se no tamborete, ao lado de uma espécie de motor a pedal, puxando prosa:
- É verdade que João Soares num tá querendo arredar o pé de indicar o delegado?
- É, mas isso já é empreita perdida! Cazuzão já acertou com o governador e o delegado é nosso! Vamo ajeitar Jõao Barreto! Mas os home aqui, cê sabe, acertaram Dió pra representar na vila. Vamo ver quem tem mais braço!
- Tomara que  Buqueirão da Serra saia ganhando nessa história! .
Depois de uma longa prosa, meu avô bateu perna pra casa, leve como um tufo de algodão. Só de olhar para aquele estimulante pacote de almanaques. Agora sim tinha munição pra bem um mês, isso contando as relidas.
Chegou em casa assoviando, deixou os almanaques em cima de uma velha cristaleira no quarto da entrada do corredor, pegou no colo uma neta pequena que àquela hora ainda brincava com uns bois de buso e uma boneca de pano nos ladrilhos do corredor da casa. Fez umas brincadeiras, foi lá dentro do quarto de despensa trouxe um taco de rapadura e deu para a pequena se distrair. Voltou para o quarto, catou um Capivarol, posicionou o candeeiro e recostou no colchão recheado de palha de uma cama velha de solteiro e começou a folhear com prazer e curiosidade a singela publicação. (segue)

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns a Vc Alam, mais uma vez você estava certo, se não sabe o que tá acontecendo na oplítica canaBRABEira lá vai: Não bastava o absurdo da eleição passada, me chega a notícia quentinha de que o MORAL do Davi e a MORALIZADORA da dorisdey estão mancumunados com o BOLA DE FOGO; dizem que o DAVI e a Dorisdey, magoadíssimo com o Dr. Prefeito Pedrão será o Candidato do BOLA nas eleições Legislativas dia 1º, ora, se elegerá, com certeza, com o voto dos vereadores da turma do fogo, MARCÂO, DINDO e ED. Filho, já vi que tú tinha toda a razão. O BANDO DE MERDA........................................................