08 maio 2010

SOB O SERENO FRIO DO BOQUEIRÃO

Penhasco no boqueirão da Fonte Grande, em 1985.
Molambo! Um molambo pintado de ilusões, foi o que imaginei sentado à beira do penhasco com uma caneca de café entre as mãos. Essa é a cena matutina de quem passou a noite sob o sereno frio do boqueirão, cá no mais remoto da serra. A caneca esquentando as mãos e o café aquecendo o tumulto de pensamentos que não se coadunam. Essa gente da Serra Azul é mesmo um caso sério. Não sei se choro diante da insignificância real ou se rio da megalomania disforme.  Um molambo de fogão daqueles bem fedido, é isso que vislumbro! Um farrapo daqueles de limpar mesa de boteco tirando onda de lenço de odalisca. 
Como a vida pode se resumir a um teatrinho emocional de algumas dezenas de panacas encravados no pé de uma serra? Como pode o pensamento não ultrapassar a cerca da vulgaridade, da ânsia diminuta de ser sem ser? O que dizer da imensidão da vida para quem o mundo não transpõe os mexericos da Rua Grande? Para quem nutre mitos menores do que a própria existência? E eu que já fui alegre quando  não sabia desse comércio da fantasia, dessa indústria primitiva da farsa: mitos de banca de camelô são mais sadios, pois já sabemos de suas fragilidades e de seus defeitos. Mas venci tudo isso, como num rito de passagem, e hoje nada me dá mais alegria do que saber a verdade, do que olhar e enxergar a encenação grosseira.
Aqui a Serra Azul segue com suas farsas, seus mitos de meia tigela. O mito é um nada que é tudo! Diria Fernando Pessoa! E digo mais: é um nada cheio de sangue humano, cheio de sonhos e desejos! É tudo para quem teceu esse saco de referências e o encheu de si e do que o embala. Mas o mito é anêmico quando a humanidade é mesquinha, quando é casca fragmentada de contradições que não venceram o limbo; quando os sonhos não passam de cochilos entre a cozinha e o banheiro. 
O Pé de Serra com seus mitos bola-de-sabão: vazios, sem peso e sem verticalidade. Flutuantes e sem referências que os sustentem. Ai de quem teve o couro espichado para servir de mito a essa gente. Os amadores camelôs de mitos não poupam sacrifícios: tecem Osvaldos que nunca existiram, Vicentes inimagináveis e vão fixando em cada eito de orgulho cultivado os piores espantalhos, as fantasias mais disformes. E vão matando a sua sede de ilusão, e vão saciando a sua vontade de pregar peças e de enganar... E vão enchendo o nada de nada e o tudo vai definhando na pobreza de sempre, no árido da caatinga, no pedregulho e na garrancheira inóspita de toda vida. E não é mais do que isso o que vejo daqui da beira deste precipício, com o sopro frio do amanhecer a dissipar a fumaça quente que evade do café  na caneca que me aquece as mãos. 
Apenas o repentino cheiro misto de  imburana e  caatinga-de-porco distrai o meu pensamento desses sentimentos tristes que me acodem nesta manhã de maio à beira de um penhasco no boqueirão da Serra Azul. E o molambo vai se desfazendo aos poucos em meu interior, como as folhas amareladas do imbuzeiro, lá embaixo, caindo tocadas pela brisa da manhã.  Há braços!

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