19 maio 2010

DEZ ANOS SEM DONA MAROCA

Abaixo divulgo pela primeira vez o texto que escrevi como necrológio para Maria Oliveira Machado, alguns dias após a sua morte. Não custa lembrar que a empresa Águia Branca, responsável pela morte de Dona Maroca ainda não foi punida nem cumpriu as suas responsabilidades legais com respeito à morte dessa uibaiense. Segue o texto escrito há dez anos:

MINHA MÃE NÃO MORREU


Se meu existencialismo não fosse nietzschiano, talvez iniciaria esta reflexão como Albert Camus em O estrangeiro: Hoje, minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Ali o tom de dúvida de Mersault, o  personagem central, sobre o dia da morte da própria mãe empurra o leitor para o absurdo da existência, para o fundo do sem sentido de existir e sua inutilidade diante da violência e falta de piedade com que a natureza nos arremessa ao túmulo. 
Nossa morte não é muito diferente da das formigas. As mesmas forças que atuam sobre os homens, atuam sobre os demais bichos. O que nos diferencia do resto da natureza só existe para nós mesmos, é invenção nossa. Criamos um mundo em que o homem tem um deus que zela por ele, que vai amenizar o absurdo da existência lhe oferecendo um lugar pós-morte paradisíaco.
Não tenho paciência para essas coisas, a única vida que atua após a nossa morte é a dos vermes. Como dizia o velho Isidoro de Sevilha, na sua criativa etimologia: Cara data vermibus, cadáver: carne dada aos vermes.
Mas as pessoas vivem sim depois da morte. A existência, apesar de seguir a reboque das forças da natureza, ganha sentido em nosso mundo de fantasia, de representação. E a gente representa tão bem que nem consegue mais descer do palco. Somos a própria persona grudada na pele. Representar dá sentido à existência humana, mais que isso... Criar é o nosso destino. Assim, minha mãe não morreu. Vive mais forte e brilhante do que nunca na minha memória. Seu sorriso, seu olhar ás vezes triste, ás vezes resignado, mas sempre firme. Seu espírito criador de vida... A sua mão enfiada na terra a semear, a fazer brotar mudas, a preparar o dia para o eterno colorido do jardim... Minha mãe não morreu, ela é a própria terra nordestina que, malgrado as agruras da seca e da estupidez humana, está sempre disposta a gerar vida nova, a alegrar os espíritos sofridos. As borboletas sabem disso mais do que nós, o pomar, as alamandas, os besouros... Eles sabem o quanto a terra é generosa.
A velha Maroca, sobretudo, foi um ser em carne viva que enfrentou os mais duros obstáculos da vida... A fome, a miséria absoluta sem jamais perder a dignidade, sem todavia deixar de ser um exemplo de caráter e nobreza de espírito, não só para os filhos como para todos os parentes que a acompanharam em suas dificuldades, suas vitórias  e em sua única derrota: a morte. Nessa instância, eu aceito o destino como ele é (eis o meu amor fati) e celebro a memória dos meus mortos para que eles se eternizem. 
(alan oliveira machado, 28 de maio de 2000)

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