04 novembro 2009

CIDADANIA: ESTRATÉGIA PARA A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA


Quando pensamos nas origens da cidadania nos vem de imediato a ideia de legado político do berço da humanidade. Muitos pensadores buscam-na na polis grega e civita romana como algo umbilicalmente ligada. O viver em comunidade, as relações e os vínculos comunitários eram as bases de sustentação da noção de cidadania e de cidade para os gregos. Isso implicava em participação do cidadão na vida política para a tomada de decisões em praça pública, nas assembleias do povo (democracia direta). No entanto, a noção de cidadania, lá nos primórdios, já emergira nas relações de domínio e de poder e era privilégio de poucos, restrita aos virtuosos e, portanto, excludente.

Postas as origens históricas, observado o estágio de desenvolvimento de cada povo, o que nos fica como legado ao longo de décadas é uma definição de cidadão inicialmente vinculada ao pertencimento a determinado território (Cidadão Uibaiense), evoluindo para o “ter” direitos, seja por concessão ou por conquista. Ser cidadão, nesses termos, constitui-se em ter direitos civis – direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Posteriormente, foram agregados os direitos políticos de participar da construção dos destinos da sociedade, exercer o poder de voto elegendo os representantes, ter o direito de representar o outro. Numa democracia, somente os direitos civis e políticos não garantem a cidadania sem os direitos sociais. Os direitos sociais são aqueles que partilham a riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde. Exercer a cidadania plena é, portanto, ter direitos civis, políticos e sociais.

Aprendemos também que esses direitos não caem do Céu como dádivas dos Deuses ou prêmios por bom comportamento. Eles seriam, em princípio, frutos de luta, da organização da sociedade civil em sua defesa. Entendendo assim, pode-se afirmar que o cidadão é o ponto de partida para o exercício dos direitos constituídos e que, portanto, os destinos da sociedade estão em suas mãos. Porém, esse cidadão é insuficiente perante a complexidade das demandas sociais que remetem à problemática de emancipação e de inclusão, donde se conclui que o povo enquanto sociedade política deve garantir o cumprimento desses direitos, além de fomentar e tornar viável sua própria participação.

Na medida em que as conquistas vão se concretizando no seio da sociedade civil, os direitos vão sendo consignados nas Leis, pois as próprias demandas sociais criam as condições para a institucionalização dos direitos. Disso resulta o entendimento de que é na esfera pública que se dá a dimensão política da cidadania. Mas, na prática, o que vemos hoje é que a forma moderna de participação popular reduziu-se, por vezes, a procedimentos que se traduzem em participação autorizada, nada mais sendo que uma regulação do cidadão pelo Estado.

Mera formalidade!!! Dizem muitos teóricos. Temos tantas leis dignas, tantos direitos assegurados e continuamos vivenciando e testemunhando miséria, violência, desigualdade e exclusão social. Isso faz com que questionemos constantemente onde está o problema.

Há algum tempo, o Caderno Cultural Boca do Inferno publicou matéria sobre o PODER MUNDIAL GLOBAL HIERARQUIZADO: quem manda e quem obedece. Na terceira camada da pirâmide desenhada na referida matéria foram apresentadas as organizações sociais signatárias dos direitos humanos globais e universais. Sobre a hierarquia do poder em escala global, essa matéria revela ainda hoje a verdade sobre a qual se deve observar a predominância da racionalidade ocidental. Essa racionalidade se sustentou na legitimação científica – paradigma dominante no campo científico - necessária para manter as diferenças políticas e econômicas, frutos da sociedade capitalista. Há sempre uma mão invisível agindo na construção de novo aparato regulatório, legitimado em escala global e que regula o novo processo de democracia globalizada.

A partir das postulações feitas por Boaventura de Souza Santos é possível acreditar que o que marca esse referencial é justamente a razão excludente ocidental quando trata toda a complexidade dos direitos humanos a partir, única e exclusivamente, de sua visão social de mundo (razão indolente). Os direitos humanos no novo cenário mundial passa a ser mecanismo de sustentação ideológica do modelo de democracia não emancipatória, necessário ao capitalismo liberal. Assim, a cidadania moderna positivada não seria dádiva dos Deuses muito menos dos homens e apesar de ser conquista histórica, resultado de luta popular, ela pode ser manipulada para atender interesses alheios à vontade popular, porque ela é uma relação sempre em construção e seu êxito ou fracasso está diretamente relacionado ao grau de participação da sociedade civil. Se a participação popular é fraca, vence o mais forte e ela, a cidadania, é usada como uma forma necessária de regulação capitalista.

A razão excludente ocidental é a revelação da razão indolente criticada por Santos (2003). Contrapondo a razão indolente predominante, Santos (idem) propõe a racionalidade cosmopolita - a sociologia das ausências; a sociologia das emergências; e o trabalho de tradução – que concebe a emancipação social como inerente à renovação das ciências sociais pela confrontação dos conhecimentos por elas produzidos com outros conhecimentos – práticos, populares, vulgares, tácitos – que apesar de serem integrantes das práticas sociais analisadas pelas ciências sócias, são sempre ignorados por estas. A sociologia das ausências ignora o outro com seus saberes simples e populares; a sociologia das emergências reconhece os múltiplos saberes; e o trabalho de tradução faz a leitura, a apreensão e o reconhecimento das experiências disponíveis sem destruir a sua identidade.

Traduzindo ao pé da letra: João Agripino é Quilombola e a fonte de renda de sua comunidade é a extração do tucupi da mandioca. A comunidade detém uma técnica tradicional eficiente, secular e de origem familiar. Os primeiros ensinamentos foram registrados em cadernetas e transmitidos de pai para filho. O governo seleciona essa comunidade para programa de formação em novas tecnologias de extração e industrialização do tucupi. Ignorando as identidades e os saberes locais, os representantes do governo despejam conteúdos durante 40 horas naquela comunidade. Avaliam o aprendizado teórico e retornam para a sede do poder central. Essa ação de governo é a prática da sociologia das ausências – o desperdício de saberes do qual somos vítimas há mais de duzentos anos. Antes de selecionar a tribo indígena Pataxós para programa de formação em ciências naturais, o governo envia a sua tribo Biólogo, Sociólogo, Antropólogo, Indigenista com domínio da língua local e um Analista de discurso, com o objetivo de ouvir os índios, aprender seus conhecimentos, reconhecê-los, identificar suas dificuldades e elaborar coletivamente uma proposta de formação cujo resultado será a publicação de cartilhas e livros de ciências naturais construídos a partir dos saberes local e da diversidade da floresta, respeitando sua identidade. Nesse caso, o governo pratica a sociologia das emergências utilizando-se do procedimento sociológico de tradução. Não há uma teoria geral a ser aplicada, o que deve haver é a tradução e o respeito aos múltiplos saberes (vulgares - não científicos). Eis o novo paradigma!

A partir desse novo paradigma, percebe-se que a ideia de cidadania transcende a reivindicações de acesso, de inclusão, pertencimento ao sistema político, enfim, a formalização de direitos, conceito este posto pelo modelo liberal. O que está em jogo não é somente o direito de inventar direitos no seio da sociedade; o que está em jogo é o direito de inventar inclusive um novo sistema político, uma nova arquitetura social. Nesse aspecto, a ideia de cidadania é eminentemente política, ela deixa de ser um direito estanque, formal e se revela como uma relação política, uma estratégia de construção da democracia. Por isso, ela deriva e está intrinsecamente ligada a ação organizada dos cidadãos (movimentos sociais autônomos).
                                                                 florentina oliveira machado

Um comentário:

Alan Oliveira Machado disse...

Boa reflexão, Flor, mas há duas coisas colocadas aí que me preocupam: "vontade popular" e "autonomia dos movimentos sociais". Eu particularmente não sei exatamente o que vem a ser vontade popular e gostaria de ver uma definição que não tendesse mais para a retórica ideológica do que para a concretude. Vontade popular é aquilo que aconteceu na Uniban? O que é autonomia dos movimentos sociais? Aliás, é preciso entender primeiro o que são movimentos sociais. Se levarmos em conta história do que se tem nominado como movimentos sociais no Brasil fica difícil falar de autonomia. A não ser que autonomia tenha sentido diferente de independência, autodeterminação ou algo que o valha. alan