No início desta tarde chovia aqui no bairro. O tempo sombrio açoitava o telhado com rajadas intermitentes. Eu corri, como sempre, para a janela. Aninhado no parapeito assistia à suspensão gradual da chuva e aos fios de água formando uma cortina cristalina ao longo do telhado. A chuva é agradável, o sombrio dela não tem nada de melancolia. Não vejo negatividade naquele ceu tingido de cinza, baixo e disforme como o teto de uma tenda árabe. Na verdade, corro à janela comumente para contemplar o viço das árvores gotejando e a corredeira que se forma à margem da rua.
Assistir à água descambando rua abaixo é uma experiência maravilhosa. A água é alegre, forte e vibrante. Aquele barulho, uma espécie de tagarelar líquido, me lembra a Fonte Grande no verde, como o canabrabeiro costuma dizer. E se a gente se detém olhando a água corrente sente a força e determinação com que ela avança rumo ao seu destino. Mas há também humildade na força vibrante da corredeira: ela não enfrenta tudo como se fosse invencível, pelo contrário, se curva a certos obstáculos, desvia-se de outros, muito embora atropele e até arraste alguns que querem ser mais do que são.
A água não vai além da sua medida. Ela mostra sempre ser o que é e pronto. A água que escorre agora na borda da rua tem um objetivo e segue obstinada rumo a alcançá-lo, sem saltar fora da sua própria medida. Ao contrário de muitas pessoas, a água não quer ir além do que é e nem aceita ser menos. Contemplar silenciosamente a água da chuva descendo em enxurrada é uma lição. Há sabedoria naquele movimento inexorável da natureza. Tenho para mim que ele nos diz: seja alegre, vibrante, siga firme o seu destino, não se abata por obstáculos minúsculos e seja flexível com o que vai além de suas forças. Mas siga, siga sempre... alegre e vibrante em direção a seus objetivos. Essa é a boa lição da natureza. Há braços!
4 comentários:
COMENTÁRIO DE ENOCH CARNEIRO:
Prezado Alan,
A viagem na tua chuva valeu, eu também fui transportado para a nossa Fonte de Uibaí, cheguei mesmo a senti os pingos reduzidos ao mínimo, ao vapor tremulante que às vezes esconde o Morro Branco. Escrever é uma arte, imaginei viajar mais tempo que nos anima e do mesmo modo nos corrói por fora e por dentro, porém você, poeta ingrato e despudorado, parou muito rápido e eu, mordido pela mesma víbora que ataca os escribas de todas os recantos, também sofri o efeito do freio de arrumação do Buzu da vida errante que se arrasta ao lado dos mortais. Vai-te embora profeta, mistura indigesta de sacro e profano, leva comtigo todos os poetas para os quintos dos infernos, escuridão nossa de cada dia, onde moram os anjos e monstros de todos os tipos. Eu te condeno a duzentos anos de solidão e quinhentas chibatadas, por adrentares em meu umbral, sem licença e sem aviso prévio. Se um dia o fogo do satanás se apagar, não satisfeito eu te fritarei com óleo de mamona, até que as tuas cinzas se espalhem e se acomodem na base das pedras do pátio de minha amada Quixabeira. Farei uma placa de bronze em tua última morada: aqui jaz, Allan do Allen, um louco perigoso que aprendeu a escrever.
Atenciosamente.
Enoch Carneiro.
RESPOSTA DE ALAN:
Caro Enoch, poeta primaz de minha terra, não desperdice o seu precioso tempo procurando o meu lugar dentro de todas as maldições possíveis. Eu já estou condenado. Sartreanamente falando, estou condenado a ser livre e a liberdade é uma faca que fere constantemente o próprio dono. Não sou louco, muito menos perigoso. Há perigos maiores no solo vão por onde caminhamos, você sabe disso. Sou tão somente livre. Pensar, questionar só é loucura onde a moral de rebanho impera. E eu realmente não consigo entender porque persiste tanto em nosso meio essa cultura arredia ao debate, acanhada e sempre disposta a satanizar quem manifesta opinião. Só tenho para mim que isso é um vício mental herdado da nossa tradição de esquerda, entranhada na academia desde sempre. Aí, inevitavelmente, fico a pensar que com essa postura tendemos a servir mais a esquemas autoritários do que à democracia.Há certa solidão em ser livre e quem não sabe ser só também não está preparado para ser livre. Mas é doce a solidão de quem é livre, é produtiva e satisfeita, é leve... Não é aquela solidão magoada, amarga de quem, doidivanas, saiu atirando para todo lado acertando inclusive os próprios pés. A solidão que me faz companhia é saudável e necessária é a solidão de quem tem delineado os limites, as dimensões e as possibilidades do que faz, é a solidão de quem cria, de quem está no rebanho, mas não é rebanho e aí você tem razão: o sagrado e o profano se entrelaçam e se arrebentam nos nossos rompantes até porque ninguém vai muito longe sem arrebentar certas cercas. Eu arrombo cercas diariamente, sou igual aquelas ovelhas ruins que Braulino picava uma canga no pescoço e no dia seguinte o "satanais", como o velho Braulo gostava de dizer, tava na rua dando trabalho pros outros. Há braços!
Eu diria que este texto ser trata o caminho d'água, ou sina de caminhar, ou seira daquelas coizonas que somente os poetas como: J.Cabral ou Manuel de Barros poderiam escrever. Senti que eu estava na quixabeira olhado pela portinhola a dança da enxurrada numa tarde qualquer. Àgua levando àquela terra as galhias tristes "incurujadas" as cabras com as quatro patas numa pedra só.
O texto me fez ir naquele armário que o tolo do Freud nos fala, desempoeirei um catálogo velho, pus-me a contemplar a beleza de uma enxurradinhazinha.
Agora eu voltando ao mundo da história do presente, eu não enxergo a democrácia como uma salvação, esta demo que vemos é uma ilusão que as grandes emprsas nos diz que temos que ê-la, ora pois.
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